Dietas ricas em proteína ganharam status de protagonistas nas últimas décadas. Seja para emagrecer, preservar músculos durante o envelhecimento ou manter a saciedade, a proteína é constantemente apontada como um dos pilares da boa alimentação.
Do outro lado, a restrição calórica moderada é considerada por muitos como uma ferramenta eficiente de controle de peso, melhora metabólica e até promoção da longevidade. E se combinássemos as duas estratégias?
A lógica dominante diria: “você vai perder gordura, preservar o músculo e proteger seus ossos.”
O que a ciência já sabe: músculo e osso são interdependentes
Na literatura científica, é amplamente aceito que massa muscular e massa óssea caminham juntas:
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Músculo contrai → gera carga sobre o osso;
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O osso responde formando mais matriz e fortalecendo-se;
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Isso é especialmente verdadeiro durante crescimento, reabilitação ou exercícios de impacto.
👉 Estudos clínicos e populacionais mostram que:
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Pessoas com maior massa magra tendem a ter melhor densidade mineral óssea (DMO);
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A sarcopenia (perda de músculo) é fator de risco independente para osteoporose e fraturas;
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A combinação de obesidade + sarcopenia (sarcopenia obesogênica) é especialmente prejudicial ao osso.
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Haveria algo errado com esses achados científicos ?
Um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, publicado em janeiro de 2025 na revista JBMR Plus, acendeu um alerta silencioso. Ao analisar os efeitos de uma dieta com menos calorias e mais proteína em um modelo experimental rigorosamente controlado, os autores encontraram um resultado inesperado:
Mais músculo. Menos gordura. E ossos mais fracos.
Vamos entender por que isso aconteceu, qual foi o protocolo utilizado, o que o estudo mostra — e o que ele não mostra — além de discutir os importantes vieses metodológicos que precisam ser conhecidos para interpretar os dados com responsabilidade.
🔬 Como o estudo foi conduzido?
A pesquisa foi realizada com sessenta ratas fêmeas adultas da linhagem Wistar Hannover, mantidas sob condições laboratoriais controladas por oito semanas. As cobaias foram divididas em três grupos alimentares:
Grupo | Calorias totais | Teor de proteína | Protocolo |
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C (controle) | 100% | Padrão | Dieta ad libitum (à vontade) |
R (restrição calórica) | 70% | Padrão | Restrição calórica |
H (hiperproteico) | 70% | Alta proteína | Restrição calórica + aumento de proteína |
Ou seja:
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O grupo controle representava uma dieta de manutenção;
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O grupo R simulava uma dieta restritiva comum;
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O grupo H testava a combinação: menos calorias + mais proteína — algo semelhante ao que muitos planos de emagrecimento adotam hoje em clínicas e academias.
🧪 O que foi avaliado?
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Composição corporal (DXA): massa magra, massa gorda, peso corporal;
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Microestrutura óssea (μCT): tíbia, fêmur, vértebra L5;
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Histomorfometria óssea: número de osteoblastos, osteoclastos e adipócitos da medula;
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Cultivo celular da medula óssea: avaliação da osteoclastogênese in vitro.
📊 O que os resultados mostraram?
💪 Composição corporal
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O grupo H preservou a massa magra mesmo com menos calorias.
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Houve redução significativa da gordura corporal.
Massa gorda final |
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C: 51,4g |
R: 17,4g |
H: 6,9g |
✅ Até aqui, parece o cenário ideal.
🦴 Estrutura óssea
Mas os dados da microtomografia revelaram:
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Redução do volume trabecular (BV/TV);
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Maior separação entre trabéculas (Tb.Sp);
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Redução da espessura cortical (Ct.Th).
BV/TV (%) | Tb.Sp (µm) |
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C: 73,7 | 0,11 |
R: 63,8 | 0,12 |
H: 61,1 | 0,13 |
❌ Mesmo com mais músculo, os ossos estavam mais frágeis.
🧫 Gordura na medula óssea (MAT)
O número de adipócitos na medula da tíbia foi surpreendente:
Adipócitos/mm² |
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C: 3,27 |
R: 16,7 |
H: 41,19 |
A MAT é um marcador associado à perda de densidade óssea, envelhecimento e doenças como a anorexia nervosa. Sua expansão afeta diretamente o ambiente hematopoiético e o metabolismo ósseo.
🔬 Osteoclastogênese in vitro
Ao cultivar células da medula das ratas, o grupo H apresentou:
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Maior diferenciação de osteoclastos;
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Indício claro de aumento da reabsorção óssea.
Osteoclastos por poço |
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C: 105 |
R: 19 |
H: 130 |
🧩 O paradoxo: mais músculo, menos osso
O modelo experimental revelou um fenômeno fisiológico paradoxal: preservação de massa magra associada a comprometimento estrutural do esqueleto.
O estudo da USP levanta uma hipótese poderosa e preocupante, que ainda não foi validado em humanos, com diferentes fontes proteicas e controle dos múltiplos sistemas envolvidos.
Mas o que poderia estar por trás disso?
⚠️ Qual foi a proteína utilizada no estudo?
Agora chegamos ao ponto crítico da interpretação.
📎 Trecho do artigo original:
“The C, R, and H groups received 140, 140, and 460 g/kg of casein, respectively.” (Romano et al., JBMR Plus, 2025)
Isso mesmo: o estudo utilizou exclusivamente a caseína como única fonte proteica, elevando sua concentração para 460 g/kg de dieta no grupo H. Isso representa uma quantidade muito acima da ingestão habitual — e mais importante ainda:
A caseína é uma proteína encontrada no leite, e não faz parte da dieta normalmente utilizada por ratas adultas.
🧠 E por que isso importa tanto?
Porque como os roedores são animais herbívoros por natureza, e seu sistema digestivo não é fisiologicamente adaptado para processar grandes quantidades de proteína animal — muito menos proteína láctea isolada em doses elevadas.
Além disso, a caseína é conhecida na literatura científica por, em altas concentrações, provocar efeitos colaterais relevantes em modelos animais:
⚠️ O que já foi observado com caseína em roedores:
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Alterações na microbiota intestinal
→ Redução da diversidade microbiana e aumento de bactérias pró-inflamatórias. -
Aumento da permeabilidade intestinal (“leaky gut”)
→ Maior translocação de endotoxinas que afetam o eixo intestino–osso. -
Estímulo inflamatório crônico subclínico
→ Elevação de citocinas como IL-6 e TNF-α, que favorecem a reabsorção óssea. -
Redução da digestibilidade proteica em altas doses
→ Especialmente quando há restrição energética, como no grupo H. - Redução da absorção proteica em ambiente de estresse calórico
🧪 O que o estudo não mediu
O modelo também não avaliou nenhum marcador de atividade metabólica óssea nem sistêmica, como:
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Vitamina D
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Paratormônio (PTH)
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P1NP (propeptídeo do colágeno tipo 1)
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C-Tx (telopeptídeo C-terminal do colágeno tipo 1)
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Osteocalcina
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Deoxipiridinolina (DPD)
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Calcitonina
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Cálcio sérico total ou iônico
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Albumina
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Fosfatase alcalina (ALP) ou óssea
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Fosfatase ácida (TRAP)
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Creatinoquinase (CPK)
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Íons séricos relacionados ao metabolismo ósseo
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Ou seja, não sabemos se a proteína utilizada pelos pesquisadores (caseína) foi de fato absorvida, nem se gerou inflamação ou alterações hormonais.
Sem dosagens bioquímicas no sangue, não podemos saber se os efeitos locais observados no osso e na medula têm reflexo sistêmico (circulante). Ou seja:
O estudo mostrou o que estava acontecendo nos ossos e nas células da medula, mas não como o organismo inteiro estava reagindo bioquimicamente.
Essa é uma limitação importante, especialmente porque:
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O PTH, a vitamina D e a osteocalcina são marcadores sensíveis e precoces de mudanças no metabolismo ósseo;
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A ausência de dados como cálcio sérico impede avaliação do balanço mineral;
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E a fosfatase alcalina óssea ou o P1NP ajudariam a confirmar se houve supressão da formação óssea, como sugerem os dados histológicos.
🧬 Limitações adicionais do estudo
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Modelo apenas com ratas fêmeas, sem controle do ciclo hormonal;
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Ausência de avaliação da atividade física espontânea;
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Curto período experimental (8 semanas);
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Modelo fechado, sem variações alimentares, emocionais ou sociais como em humanos.
✅ O que o estudo realmente mostra
“Em RATAS ADULTAS sob restrição calórica, o aumento da ingestão DE CASEÍNA foi associado à preservação da massa magra, mas também à piora da qualidade óssea, aumento da gordura na medula e maior reabsorção do osso.”
📉 Limitações adicionais do modelo
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Animais exclusivamente fêmeas, com possíveis flutuações hormonais (ciclo estral não monitorado);
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Sem controle da atividade física espontânea;
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Modelo de 8 semanas, que representa uma janela curta para alterações esqueléticas em seres humanos;
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Não aplicável a dietas humanas reais, que incluem alimentos variados e são influenciadas por múltiplos fatores: estresse, sono, fármacos, genética, etc.
🚫 O que este estudo não permite afirmar
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Que dietas hiperproteicas são prejudiciais a humanos;
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Que ingerir proteínas enfraquece os ossos;
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Que músculo causa perda óssea;
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Que devemos reduzir proteína em dietas clínicas.
🧭 O que podemos aprender
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O tipo de proteína importa;
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A saúde óssea é mais sensível à restrição calórica do que à massa muscular isoladamente;
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O osso é afetado por múltiplos sistemas: hormonal, intestinal, inflamatório, energético;
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e principalmente:
“Quando a proteína ingerida não é fisiológica para o organismo e é administrada sob condições de estresse energético crônico, podem haver prejuízos desastrosos a vários órgãos e tecidos.”
Apesar de abordar a saúde óssea, não foram realizadas análises de integridade intestinal, inflamação sistêmica ou composição da microbiota. Isso é uma lacuna importante, pois o eixo intestino–sistema imune–osso é cada vez mais reconhecido como determinante na regulação da formação e reabsorção óssea, especialmente em estados de estresse calórico.
🔋 A restrição calórica por si só já compromete a saúde óssea
Tanto o grupo R quanto o grupo H apresentaram perda estrutural óssea significativa, o que indica que a restrição energética de 30% aplicada ao longo de 8 semanas já foi suficiente para causar redução da formação óssea e ativação da reabsorção, independentemente da quantidade de proteína.
Portanto, o prejuízo ósseo pode ter sido mais consequência do déficit calórico do que da proteína em si.
Dessa forma, esse estudo experimental não serve como base para prescrição dietética em humanos.
📎 Referência científica original
Romano BC, Araújo IM, Ribeiro MSP, Silva LTP, Dick-de-Paula I, Fukada SY, et al.
Low-calorie and high-protein diet has diverse impacts on the muscle, bone, and bone marrow adipose tissues.
JBMR Plus. 2025 Jan;9(1):ziae150.
https://doi.org/10.1093/jbmrpl/ziae150
📌 Veja também
Divulgação oficial da pesquisa pela USP:
👉 https://www.fmrp.usp.br/pb/arquivos/18238