A dor crônica no joelho tem novo inimigo: a metformina
A artrose de joelho (ou osteoartrite) é uma das doenças mais incapacitantes do mundo. Estima-se que mais de 365 milhões de pessoas sofram com essa condição globalmente, principalmente aquelas com sobrepeso ou obesidade, onde o impacto nas articulações é ainda mais severo devido ao peso corporal e ao quadro inflamatório associado ao excesso de gordura.
Até recentemente, os tratamentos disponíveis para a artrose de joelho eram limitados a analgésicos, fisioterapia, infiltrações e, em estágios mais avançados, cirurgia. No entanto, um estudo clínico inédito publicado na revista JAMA (abril de 2025) trouxe um novo protagonista para esse cenário: a metformina, um medicamento amplamente usado no tratamento do diabetes tipo 2 há mais de 60 anos.
📚 O estudo: onde foi publicado, quem fez e por que ele é importante
O estudo, liderado pela pesquisadora Dra. Feng Pan e equipe da Monash University, Austrália, foi publicado na JAMA (Journal of the American Medical Association) em abril de 2025. Ele é um dos primeiros ensaios clínicos randomizados, duplo-cego e controlado por placebo a investigar se a metformina pode aliviar dor, rigidez e perda funcional em pacientes com osteoartrite de joelho e sobrepeso/obesidade.
🔬 O que torna esse estudo ainda mais relevante é sua metodologia: conduzido inteiramente via telemedicina, em um contexto pós-pandemia, ele alcançou alta taxa de adesão e segurança, provando que a ciência pode ser acessível e moderna.
🧪 Metodologia: como o estudo foi feito
O ensaio envolveu 107 participantes com média de idade de 58,8 anos, sendo 68% mulheres, todos com diagnóstico de osteoartrite sintomática e IMC ≥25. Eles foram divididos em dois grupos:
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Grupo Metformina (n=54): tomaram 2000 mg/dia do medicamento por 6 meses.
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Grupo Placebo (n=53): receberam um comprimido visualmente idêntico, mas inativo.
Os participantes foram avaliados antes, aos 3 e aos 6 meses usando:
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Escala Visual Analógica de Dor (VAS)
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Índice WOMAC (Western Ontario and McMaster Universities Osteoarthritis Index)
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Avaliação de Qualidade de Vida (AQoL-8D)
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Critérios de resposta OMERACT-OARSI
📈 Resultados: o que os números mostraram
✅ Redução significativa da dor
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Metformina: redução média de –31,3 mm na VAS
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Placebo: redução média de –18,9 mm
🟢 Diferença entre os grupos: –11,4 mm (p = 0,01) — estatisticamente significativa e clinicamente relevante.
✅ Melhora nos índices de rigidez e função:
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Rigidez WOMAC: –56,9 no grupo metformina vs –26,7 no grupo placebo (p = 0,01)
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Função WOMAC: –426,1 vs –221,7 (p = 0,009)
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Dor WOMAC: –113,9 vs –68,2 (p = 0,045)
📊 Efeito moderado com tamanho de efeito 0,43, considerado positivo e promissor para um tratamento não cirúrgico.
🧬 Como a metformina age no organismo além do controle da glicose?
Estudos anteriores já demonstravam que a metformina tem efeitos anti-inflamatórios, melhora no metabolismo lipídico, redução da resistência à insulina, e modulação da AMPK (proteína quinase ativada por AMP), um regulador chave da homeostase celular e inflamação
Esses mecanismos explicam por que a metformina pode ajudar a preservar a cartilagem e aliviar sintomas articulares — especialmente em pessoas com obesidade, que sofrem com inflamação crônica e estresse mecânico nos joelhos.
🔁 Comparações com outros estudos científicos confiáveis
🧩 Estudos observacionais prévios já haviam sugerido esse efeito:
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Osteoarthritis Initiative (EUA): pacientes com obesidade que usaram metformina perderam menos cartilagem do joelho ao longo de 4 anos
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Estudo em Taiwan: mostrou que o uso combinado de metformina reduziu taxas de artroplastia em 10 anos
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Cohort retrospective com 20 mil pessoas: metformina foi associada a menor risco de desenvolver OA em comparação com sulfonilureias.
🧪 Entenda o papel da insulina e dos condrócitos na destruição da cartilagem
Pouca gente sabe, mas os condrócitos, que são as células responsáveis por manter a cartilagem saudável nas articulações, possuem receptores para insulina. E esse detalhe muda tudo quando falamos de pessoas com sobrepeso, obesidade ou diabetes tipo 2.
🧬 O que acontece com os condrócitos em ambientes com alta insulina?
Em condições normais, a insulina tem uma ação anabólica, ou seja, de construção e regeneração tecidual. Porém, em pacientes com resistência à insulina — como é o caso da maioria das pessoas com diabetes tipo 2 e obesidade —, os tecidos não respondem corretamente à insulina, e o pâncreas passa a produzir quantidades maiores desse hormônio.
🟥 Resultado: os níveis elevados e constantes de insulina no sangue (hiperinsulinemia) ativam **receptores nos condrócitos que, paradoxalmente, passam a desempenhar uma função catabólica — ou seja, destrutiva do tecido da cartilagem
⚠️ Consequências desse processo:
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Aumenta a produção de metaloproteinases de matriz (MMPs) — enzimas que degradam colágeno e proteoglicanos, principais componentes da cartilagem.
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Reduz a produção de proteínas estruturais, comprometendo a integridade da matriz extracelular.
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Promove a inflamação local e a liberação de citocinas inflamatórias, como TNF-α e IL-1β, agravando ainda mais o quadro.
👉 Em outras palavras, o excesso de insulina, longe de proteger, contribui diretamente para a progressão da osteoartrite nas pessoas com resistência insulínica.
💊 Metformina: o antagonista do catabolismo articular
Aqui entra a grande sacada do estudo com metformina: o medicamento reduz a resistência à insulina e os níveis de insulina circulante, além de possuir efeitos anti-inflamatórios diretos nas células articulares
✔️ A metformina bloqueia a sinalização destrutiva nos condrócitos, reduzindo a expressão de MMPs e inibindo vias inflamatórias como NF-κB, que está envolvida na ativação de genes catabólicos.
✔️ Ela também ativa a AMPK (proteína quinase ativada por AMP), que atua como um “guardião metabólico”, promovendo a regeneração celular e a homeostase articular
🔗 Correlação com o diabetes tipo 2
A osteoartrite em pessoas com diabetes não se explica apenas pelo excesso de peso. Pesquisas mostram que mesmo pessoas magras com diabetes tipo 2 apresentam maior risco de artrose — isso se deve exatamente a esse mecanismo metabólico e inflamatório que envolve os condrócitos, a insulina e o desequilíbrio da matriz extracelular
Portanto, o uso da metformina, ao controlar a hiperinsulinemia, reduzir a inflamação e proteger a cartilagem, pode representar um novo paradigma para tratar não só os sintomas, mas também a fisiopatologia da osteoartrite.
🔄 Metformina, insulina e condrócitos: a nova chave para proteger as articulações
Como explicamos, os condrócitos, ao serem expostos a altos níveis de insulina — como ocorre frequentemente em pessoas com resistência insulínica ou diabetes tipo 2 — começam a expressar genes que promovem a quebra da cartilagem. Eles deixam de cumprir sua função regenerativa e passam a colaborar com a destruição do tecido articular, acelerando a progressão da artrose.
Essa descoberta muda a forma como entendemos a osteoartrite em pessoas com obesidade ou doenças metabólicas: não é só uma doença “mecânica”, causada por excesso de peso, mas também “bioquímica”, induzida por inflamação e desequilíbrio hormonal.
🧠 E é nesse cenário que a metformina surge como um agente promissor, por atuar exatamente nos mecanismos celulares e metabólicos que prejudicam os condrócitos:
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Reduz a resistência à insulina
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Diminui os níveis de insulina circulante
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Modula vias inflamatórias (como NF-κB e MAPK)
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Estimula a AMPK, que protege as células da cartilagem
Esses efeitos já foram confirmados em diversos estudos pré-clínicos e agora ganham força com este ensaio clínico recém-publicado na JAMA.
🌍 Repercussão: por que isso importa para o Brasil e o mundo?
O Brasil tem mais de 9 milhões de pessoas com artrose e uma das maiores taxas de sobrepeso da América Latina, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia. A obesidade é um fator de risco não só para o diabetes, mas também para doenças articulares.
🔎 Se a metformina — um medicamento barato, disponível no SUS, seguro e amplamente utilizado — puder ser reposicionada para o tratamento da artrose, estamos diante de uma revolução terapêutica de baixo custo e alto impacto populacional.
Além disso, para os profissionais de saúde, essa abordagem integra endocrinologia, reumatologia e ortopedia, ampliando o olhar sobre doenças crônicas e seus tratamentos conjuntos.
🌱 Próximos passos: o que ainda precisamos saber?
O estudo da JAMA é sólido, mas também levanta algumas perguntas importantes:
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Qual o efeito da metformina no longo prazo? O estudo teve duração de 6 meses, mas os benefícios poderiam se manter ou até melhorar em 12 ou 24 meses?
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Funcionaria também em pacientes sem sobrepeso?
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Seria possível prevenir a progressão da artrose em estágios iniciais com metformina?
👩🔬 A ciência já está buscando essas respostas. Outros estudos estão em andamento, inclusive com imagens por ressonância magnética, para avaliar a estrutura da cartilagem ao longo do tempo. A tendência é que vejamos mais ensaios clínicos com metformina como terapia adjuvante na artrose nos próximos anos.
📚 Referência
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Pan F, Wang Y, Lim YZ, et al. Metformin for Knee Osteoarthritis in Patients With Overweight or Obesity. JAMA. 2025 Apr 24. Acesse aqui